sábado, 26 de fevereiro de 2011

Os pressupostos do empirismo filosófico


O empirismo (de empeiria = experiência) opõe à tese do racionalismo (segundo a qual o pensamento, a razão, é a verdadeira fonte de conhecimento), a antítese que diz: a única fonte do conhecimento humano é a experiência. Na opinião do empirismo, não há qualquer património a priori da razão. A consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os exclusivamente da experiência. O espírito humano está por natureza vazio; é uma tábua rasa, uma folha em branco onde a experiência escreve. Todos os nossos conceitos, incluindo os mais gerais e abstractos, procedem da experiência. Enquanto o racionalismo se deixa levar por uma ideia determinada, por uma ideia de conhecimento, o empirismo parte dos factos concretos. Para justificar a sua posição, recorre à evolução do pensamento e do conhecimento humanos. Esta evolução prova, na opinião do empirismo, a alta importância da experiência na produção do conhecimento. A criança começa por ter percepções concretas. Com base nessas percepções chega, paulatinamente, a formar representações gerais e conceitos. Estes nascem, por conseguinte, organicamente da experiência. Não se encontra nada semelhante a esses conceitos que existem completos no espírito ou se formam com total independência da experiência. A experiência apresenta-se, pois, como a única fonte do conhecimento.

Enquanto os racionalistas procedem da matemática a maior parte das vezes, a história do empirismo revela que os seus defensores procedem quase sempre das ciências naturais. Isto é compreensível. Nas ciências naturais a experiência representa o papel decisivo. Nelas trata-se sobretudo de comprovar exactamente os factos mediante uma cuidadosa observação. O investigador está completamente entregue à experiência. É muito natural que quem trabalha de preferência ou exclusivamente com este método das ciências naturais, tenha tendência para de antemão colocar o factor empírico sobre o racional. Enquanto que o filósofo de orientação matemática chega facilmente a considerar o pensamento como a fonte única do conhecimento, o filósofo que vem das ciências naturais tenderá para considerar a experiência como fonte e base de todo o conhecimento humano.

J. Hessen, Teoria do Conhecimento, Almedina


1. Explique o alcance da seguinte afirmação: "Na opinião do empirismo, não há qualquer património a priori da razão. A consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os exclusivamente da experiência".

2. Discuta a cumplicidade existente entre o empirismo e as ciências naturais.

3. Produza um texto onde torne evidentes as principais diferenças existentes entre a concepção empirista e o racionalismo filosófico.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Descartes: o itinerário filosófico


1. Dúvida
"[...] admiti anteriormente como absolutamente certas e manifestas muitas coisas que, entretanto, depreendi depois serem duvidosas. Que coisas foram estas? A Terra, o Céu, os Astros, e todas as coisas que recebi pelos sentidos. Mas o que compreendia eu delas, com clareza? As próprias ideias ou pensamentos de tais coisas, que se apresentavam ao meu espírito. E ainda agora não contesto que estas ideias estão de facto em mim. [...] Mas que mais? Quando considerava nos temas da Aritmética e da Geometria coisas absolutamente simples e fáceis, como dois mais três são cinco, e equivalentes, não as intuí pelo menos bastante claramente para afirmar que são verdadeiras? Posteriormente, só fiz o juízo de que se devia duvidar delas porque me vinha ao espírito que possivelmente um certo Deus podia ter-me dado uma tal natureza que eu também me enganasse sobre aquelas coisas que parecem mais manifestas. Mas sempre que esta opinião sobre o poder supremo de Deus, concebida anteriormente, me ocorre, não posso deixar de confessar que a ele lhe é fácil, se o quiser, conseguir que eu erre também naquilo que intuo do modo mais evidente pelos olhos do espírito."

2. Cogito
"[...] persuadi-me que não havia absolutamente nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuns espíritos, nenhuns corpos. Não me persuadi também de que eu próprio não existia? Pelo contrário, eu existia com certeza se me persuadi de alguma coisa. Mas há um enganador, não sei qual, sumamente poderoso, sumamente astuto, que me engana sempre com a sua indústria. No entanto, não há dúvida de que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pesado e repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo meu espírito, é necessariamente verdadeira."

3. Deus
a) " ... é manifesto, pela luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade objectiva na causa ... como no efeito da mesma causa. Porque, pergunto, de onde pode o efeito tirar a sua realidade, a não ser da causa? E de que modo poderia ela conferir-lha se não a possuísse também? Daqui se segue que nem algo pode provir do nada, nem também aquilo que é mais perfeito, isto é, que contém em si mais realidade, daquilo que contém menos perfeição."

b) "Quanto ao que é claro e distinto nas ideias das coisas corpóreas, parece-me que alguma coisa poderia ser tirada da ideia de mim mesmo ... De maneira que só resta a ideia de Deus, na qual se deve considerar se há alguma coisa que não pudesse provir de mim próprio. Pelo nome de Deus compreendo uma certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, omnipotente, e pela qual foram criados quer eu mesmo, quer tudo o resto que existe, se é que alguma coisa existe. O que, sem dúvida, é tão notável que quanto mais cuidadosamente atento nessa ideia tanto menos parece que eu possa tirar só de mim a sua origem. E, por conseguinte, do atrás dito deve concluir-se que Deus existe necessariamente. Porque, embora pela razão de eu ser uma substância esteja em mim uma certa ideia de substância, no entanto, como sou finito, não seria a ideia de uma substância infinita, a não ser que procedesse de outra substância que fosse realmente infinita."

c) "Agora parece que enxergo um certo caminho pelo qual se é conduzido desta contemplação do Deus verdadeiro ... ao conhecimento de todas as outras coisas. Em primeiro lugar, reconheço que é impossível que ele me engane alguma vez, porque em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou de poder; querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso, não pertence a Deus. A seguir, verifico que há em mim uma certa faculdade de julgar que, certamente, recebi de Deus, como todas as restantes coisas que há em mim; e, porque ele não me quer enganar, com certeza não ma deu tal que, quando rectamente a uso, possa errar alguma vez."

4. Ideias inatas
"E agora, depois de ter notado o que se deve evitar e o que se deve fazer para atingir a verdade, parece-me que nada é mais urgente do que emergir das dúvidas em que caí nos dias precedentes e ver se posso conhecer algo de certo sobre as coisas materiais.E, na verdade, antes de inquirir se tais coisas existem for a de mim, devo considerar as ideias delas, na medida em que estão no meu pensamento, e ver quais são as distintas e quais são as confusas. Assim, imagino distintamente a quantidade, que os filósofos chamam vulgarmente quantidade contínua, ou seja, a extensão desta quantidade ou, melhor, de uma coisa maior ou menor, segundo o comprimento e largura e a profundidade. Nela posso contar várias partes e atribuir-lhes toda a espécie de grandezas, figuras, situações e movimentos locais, e a estes movimentos quaisquer durações. E não conheço apenas perfeitamente e com evidência estas coisas, assim genericamente consideradas. Além disso, se presto atenção, concebo também inúmeras particularidades sobre as figuras, o número, o movimento, e coisas semelhantes, cuja verdade é tão clara e tão consentânea com a minha natureza que, logo que as começo a descobrir, parece-me que não aprendo qualquer coisa de novo, mas que, ao contrário, me recordo do que já anteriormente sabia: ou seja, que presto atenção, pela primeira vez, a coisas que há muito tempo já estavam dentro de mim, sem que eu antes tivesse dirigido para elas a minha atenção."

Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira

Este texto de Descartes permite-nos entender o circuito fundamental do pensamento do filósofo, já que assenta na explicitação dos seus conceitos fundamentais: a dúvida, o cogito, Deus e as ideias inatas.

Os pressupostos do racionalismo filosófico


A posição epistemológica que vê no pensamento, na razão, a fonte principal do conhecimento humano, chama-se racionalismo (de ratio = razão). Segundo ele, um conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente necessário e universalmente válido. Quando a nossa razão julga que uma coisa tem que ser assim e que não pode ser de outro modo, que tem de ser assim, portanto, sempre e em todas as partes, então, e só então, nos encontramos ante um verdadeiro conhecimento, na opinião do racionalismo. Um conhecimento desse tipo apresenta-se-nos, por exemplo, quando formulamos o juízo "o todo é maior do que a parte", ou o juízo "todos os corpos são extensos". Em ambos os casos vemos com evidência que tem de ser assim e que a razão se contradizia a si mesma se quisesse sustentar o contrário. E porque tem de ser assim, é também sempre e em todas as partes assim. Estes juízos possuem, pois, uma necessidade lógica e uma validade universal rigorosa.

Pelo contrário, sucede uma coisa muito diferente com o juízo "todos os corpos são pesados", ou no juízo "a água ferve a 100 graus". Neste caso só podemos ajuizar que é assim, mas não que tem de ser assim. É perfeitamente concebível que a água ferva a uma temperatura inferior ou superior; e também não significa uma contradição interna representar-se um corpo que não possua peso, pois a nota do peso não está contida no conceito do corpo. Estes juízos não têm, pois, necessidade lógica. E mesmo assim falta-lhes a rigorosa validade universal. Podemos julgar unicamente que a água ferve a 100 graus e que os corpos são pesados, até onde podemos comprová-lo. Estes juízos só são válidos, pois, dentro de limites determinados. A razão disto é que, nestes juízos, encontramo-nos limitados à experiência. Isto não acontece nos juízos primeiramente citados. Formulamos o juízo "todos os corpos são extensos" representando o conceito de corpo e descobrindo nele a nota da extensão. Este juízo não se funda, pois, em qualquer experiência mas sim no pensamento. Daqui resulta, portanto, que os juízos fundados no pensamento, os juízos que procedem da razão, possuem necessidade lógica e validade universal; os outros, pelo contrário, não a possuem. Todo o verdadeiro conhecimento se funda deste modo – assim conclui o racionalismo –, no pensamento. Este é, por conseguinte, a verdadeira fonte e base do conhecimento humano.

Uma forma determinada do conhecimento serviu evidentemente de modelo à interpretação racionalista do conhecimento. Não é difícil dizer qual é: é o conhecimento matemático. Este é, com efeito, um conhecimento predominantemente conceptual e dedutivo. Na geometria, por exemplo, todos os conhecimentos derivam de alguns conceitos e axiomas supremos. O pensamento impera com absoluta independência de toda a experiência, seguindo somente as suas próprias leis. Todos os juízos que formula, distinguem-se, além disso, pelas características da necessidade lógica e da validade universal. Pois bem; quando se interpreta e concebe todo o conhecimento humano em relação a esta forma de conhecimento, chega-se ao racionalismo.

J. Hessen, Teoria do Conhecimento, Almedina


1. O texto de J. Hessen torna evidente as principais características do racionalismo. Seleccione do mesmo, cinco adjectivos que tornem evidente a especificidade desta corrente filosófica.

2. Produza um pequeno texto onde evidencie a cumplicidade entre o racionalismo e o pensamento matemático e geométrico.