domingo, 2 de janeiro de 2011

Os vários tipos de argumentação com que somos confrontados no mundo contemporâneo

A meia verdade da meia mentira

Eu queria perceber os pássaros, voar como o Jardel sobre os centrais: mas em vez dão-nos Barrarabás. Eis o que sinto ao ver diariamnte os noticiários televisivos: escuto-os na ilusão de perceber por onde piso e dão-me a fotografia de um mundo cada vez mais pisado. Giram em torno de dois pilares: a política e a justiça. O primeiro é já antigo; o segundo, mais recente. Os "média" descobriram a justiça como fonte de espectáculo - uma modalidade mais sofisticada, afinal do que falar simplesmente no crime, que juntamente como sexo compunha o menu com que se criaram e alimentaram as audiências nos anos iniciais da televisão privada. O discurso é, no entanto, igualmente simplista: dantes dava-nos os agressores, agora servem-nos os justiceiros. (...) Vejo-me portanto obrigado a discorrer sobre política e sobre justiça. Quer dizer, sobre uma certa política e sobre uma certa justiça.Uma certa política. Quando vemos um conhecido aparecer na televisão dizemos: "O Manel não é assim, a televisão deforma-o." É o que acontece à política. Quando um político sabe que está a falar para a TV, passa a mover-se num campo discursivo virtual em que a realidade é meramente um pretexto e o objectivo comunicacional a persuasão do espectador. A eficácia da persuasão mede-se na sondagem de popularidade do mês seguinte, afanosamente ecoada pela comunicação social.

A verdade e a mentira não importam para aqui- a solidez de uma ficção não está nelas mas na fluência e na e na estética da narrativa. É natural, portanto, que essa estrutura de apresentação dos factos deixe o espectador um pouco desarmado, a meio caminho entre o que é e o que não é, hesitante entre a credulidade e a desconfiança. Ouvir os políticos na TV tornou-se um exercício de tal modo ambíguo que precisamos de tradutores - de preferência de outros políticos, que são mais aptos para conhecer as manhas que se encobrem pelo meio dos discursos explícitos. É este o papel de figuras como Marcelo Rebelo de Sousa, Pacheco Pereira, Santana Lopes, Manuel Maria Carrilho. (...)

A mensagem politiza é desfocada, mesmo quando aparenta nitidez suportada em dicotomias propositadamente simplistas, como as de Paulo Portas ou Rui Rio, e precisamos de óculos paras as descodificar. (...)

A persuasão, quando é levada ao limite roça a mentira. A mentira é o lugar que resulta da exploração sistemática da persuasão. Quando a persuasão tende para o infinito, como diria um matemático, estamos em pleno espaço da mentira. E é por isso que a mentira, em política é infinita. E é também por isso que é impune - porque se confunde com a persuasão e esta com a habilidade discursiva. E a habilidade discursiva não deve ser punida. Mas também por outra razão: porque um espaço onde apenas importa o espectáculo é um e espaço sem memória- o espectáculo é o acto do imediato, é o brilho que não persiste para além da sua irrupção momentânea. Consequência: podemos dizer não importa o quê, porque, como a memória está praticamente extinta deste espaço público mediatizado, não se torna nítido que alguém esteja a mentir.. apliquemos à política a máxima que Pimenta Machado inventou para o futebol: o que hoje é verdade amanhã pode ser mentira(...) Mesmo quando a mentira é levemente detectada, isso não tem consequências, porque deixou de ser vista como um desvalor para se tornar um hábito, deixou de ser um defeito de carácter para ser um ardil, deixou de ser uma ofensa para ser uma táctica. E, como a política praticamente se converteu em táctica e ardil, todo o argumento que possa ser categorizável como tal, independentemente da sua relação com a verdade, está legitimado. Acontece que as pessoas, nós os comuns, que andamos pela rua, vamos à padaria e discutimos no trânsito, funcionam em redes relacionais directas, face a face, emocionais e implicadas. Trata-se de um espaço que é a antítese do espaço mediático. É portanto natural que a política ande afastada das pessoas, apesar das pessoas concretas para a legitimar jogos abstractos, traduzidos em última análise na retórica de palanque onde se esgrimem poderes afastados de nós.

1. Uma certa justiça: Não há, portanto, qualquer possibilidade de continuarmos tranquilizarmo-nos com dicotomias como esta da mentira e da verdade -nem mesmono interior do dispositivo concebido expressamente para as distinguir. O sistema jurídico foi criado pela modernidade para ser o espaço da isenção e da verdade e os tribunais os palcos onde elas eram exigidas e encenadas. (..) E a encenação pode continuar, de tribunal em tribunal até ao Supremo - tudo coisas longe de nós, inalcançáveis e quase etéreas. De modo que o lugar criado para a produção da verdade se tornou numa infernal máquina onde tudo se enreda e adia. Eis a sensação que vamos começando a ter com o processo Casa Pia.


Luís Fernandes, In Jornal Público, 1 de Outubro de 03

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